MÉDICOS TAMBÉM ESTÃO SUJEITOS AO ADOECIMENTO PSÍQUICO
Síndrome de Burnout tem acometido muitos profissionais que não identificam os próprios sintomas. Pesquisas apontam que a prevalência de casos é alta na Medicina
Acostumado a cuidar da saúde de outras pessoas, o médico, em geral, é relutante em procurar ajuda profissional para si, o que pode ser ainda mais evidente na saúde mental. É importante ficar atento aos sinais e reconhecer os próprios sintomas, que podem aparecer decorrentes de várias doenças psíquicas.
Entre elas está a síndrome de Burnout, um distúrbio psicológico caracterizado pelo comprometimento emocional e comportamental resultante da exposição a altos níveis de estresse ocupacional, e que se tornou bastante comentada nos últimos anos. Embora não haja um reconhecimento padronizado na versão atual do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, publicado pela American Psychiatric Association, o diagnóstico “esgotamento” (código Z73.0), presente na Classificação Internacional de Doenças, 10a Edição (CID-10), pode ser atribuído a quadros de Burnout. Alguns psiquiatras, contudo, a consideram como um subtipo de transtorno de ajustamento.
Enquanto a síndrome de Burnout resulta de eventos adversos no trabalho, os transtornos depressivos não dependem de um contexto para ocorrer, suas manifestações são generalizadas e, inevitavelmente, afetam todas as situações da vida do indivíduo.
Uma pesquisa feita pela American Medical Association (AMA), em 2020, (Berg S. Physician burnout: Which medical specialties feel the most stress. AMA Physician Health) apontou uma taxa de Burnout de 42% entre os médicos que participaram. Mesmo com limitações por ter sido feito on-line, em que os médicos autorrelataram os sintomas, o estudo revelou a prevalência sendo alta na profissão. As especialidades mais afetadas foram: Urologia (54%), Neurologia (50%), Nefrologia (49%), Endocrinologia (46%), Medicina de Família (46%) e Radiologia (46%).
Um outro estudo de 2021, da Society for Vascular Surgery, dos EUA, (Coleman et al. Vascular surgeon wellness and burnout: A report from the Society for Vascular Surgery Wellness Task Force. Journal of Vascular Surgery, 73(6), 1841-1850), revelou que dos 2.905 membros da sociedade, 41% relataram ao menos um sintoma de Burnout, e 37% salientaram sintomas de depressão no mês anterior. O mais preocupante é que 8% demonstraram ter pensado em suicídio nos 12 meses anteriores.
O psiquiatra, conselheiro e coordenador da Assessoria de Comunicação do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp), Dr. Edoardo Filippo de Queiroz Vattimo, explica que o médico pode suspeitar que esteja sofrendo de Burnout, quando perceber que não está mais se sentindo satisfeito e realizado ao desempenhar o seu trabalho, e não apresenta o sentimento de satisfação por sentir-se capaz de ajudar seus pacientes. Associado a isso, são frequentes a exaustão e alienação.
Ainda de acordo com Dr. Vattimo, é difícil para muitos médicos se colocar na posição de paciente, o que gera uma sensação psicológica de perda de controle. A baixa procura por assistência médica pode decorrer de uma necessidade de parecer saudável perante à sociedade e colegas, uma vez que existe o conceito de que o médico é quem trata os outros e não quem fica doente. O profissional deve, ainda, ser psiquicamente inabalável, pois qualquer sinal de fraqueza pode sugerir a incapacidade para o adequado tratamento de seus pacientes. “Na saúde mental, isso se soma ao estigma que adquire características peculiares quando falamos de Psiquiatria. Assim, é natural comentar que algum colega, por exemplo, sofreu um enfarte. Mas se o mesmo indivíduo for internado por um quadro de mania, aí já é um assunto tabu. O silêncio impera e, portanto, o medo de o segredo ser exposto é uma barreira importante que o impede de buscar ajuda”, revela o psiquiatra.
Veja abaixo os principais sintomas da síndrome de Burnout
- Exaustão emocional
Sentimento de desesperança, solidão, tristeza, raiva, impaciência, irritabilidade e tensão, em um contexto de baixa energia, fraqueza e preocupação excessiva.
Pode se associar a sintomas somáticos como cefaleia, náuseas, dores lombares ou cervicais, além de distúrbios do sono. - Distanciamento afetivo (ou Despersonalização)
Postura de alienação, que resulta em atitude distante e insensível em relação aos outros e ao próprio trabalho. O indivíduo está desmotivado e se afasta emocionalmente do trabalho. - Falta de sensação de realização pessoal
Inclui sentimentos de inadequação e incompetência, associados à perda da autoconfiança e sentimentos de que o que é realizado no trabalho não tem valor ou que muito pouco se é alcançado.
Dr. Vattimo reforça a importância de procurar ajuda qualificada ao sinal de qualquer tipo de mudança de comportamento do profissional. “Quando o rendimento e a satisfação diminuem e a relação com os pacientes piora, podem surgir conflitos, queixas e até mesmo denúncias decorrentes da postura distanciada e insensível. Muitas vezes, o médico pode não conseguir identificar que está com problemas, mas deve se preocupar quando passar a ouvir de diversas pessoas de seu convívio que algo está diferente. E, claro, se surgirem outros sintomas além dos de Burnout, como os de depressão, abuso de substâncias, entre outros. Devemos alertar também para que colegas e familiares fiquem vigilantes e, caso suspeitem de que o indivíduo esteja com os sintomas, tente, antes de tudo, acolher e validar o sofrimento. Nunca confrontar e julgar, e sempre buscar incentivar a ajuda profissional”, adverte.
Os residentes também vêm sofrendo com a síndrome de Burnout.
Um estudo recente, de 2021, da Occupational Medicine, aponta que o estigma é ainda mais prevalente em médicos mais jovens. Talvez por causa das características específicas da residência médica, em que se trabalha exaustivamente. “A residência tem os ingredientes perfeitos para o Burnout: alta carga horária, incertezas quanto ao futuro profissional, dificuldades cada vez maiores no mercado de trabalho e o famigerado assédio moral. Esse último, infelizmente, tão prevalente na residência médica. É tão importante, que escrevemos um livro sobre esse problema e publicamos pelo Cremesp em 2019. A isso se soma a falta de supervisão adequada, que é uma realidade em muitos serviços. A carga emocional do trabalho e, muitas vezes, a demanda de pacientes e familiares, caem quase que inteiramente nas costas do residente. E isso pode levar ao esgotamento emocional”, avisa o psiquiatra. Referência: Wijeratne, C., Johnco, C., Draper, B., & Earl, J. (2021). Doctors’ reporting of mental health stigma and barriers to help-seeking. Occupational Medicine, 71(8), 366-374.
Entretanto, a síndrome de Burnout não pode ser atribuída a um fator isolado, mas sim a uma combinação de características individuais, sociais, laborais e organizacionais bem definidas que, quando associadas, culminam na condição. Para o psiquiatra, porém, se for estabelecido o diagnóstico, é importante identificar os fatores que estejam associados a esse estado e buscar modificar o ambiente de trabalho. “Se possível, procure conversar com os superiores e negociar mudanças na rotina. Além do apoio profissional, é fundamental ter uma rede de suporte social forte. Para isso, é essencial cultivar boas relações no ambiente de trabalho e também fora dele. Outra medida substancial é otimizar o tempo livre, priorizar atividades relaxantes e de autocuidado. Por exemplo, dedicar tempo para cuidar de si, fazer atividades físicas ao ar livre e ter hobbies. A higiene do sono é primordial. Atividades de mindfulness, que envolvem não apenas meditação, mas também o aumento da consciência sobre o ambiente, estão cada vez mais em voga e podem ser muito benéficas”, pontua o especialista.
O cirurgião vascular, que pediu para não ter sua identidade revelada, Dr. G.M., contou que passou recentemente por um quadro de síndrome de Burnout. Ele revela que após uma gripe, que se transformou numa suspeita de Covid-19, percebeu um cansaço precoce às caminhadas, picos hipertensivos e passou a acordar à noite com eventos de ansiedade e sudorese, e quadros que se assemelhavam a situações de pânico. “Percebi que postergava compromissos, não respondia as correspondências, evitava compromissos, afazeres profissionais, praticamente me escondia e me excluía. Evitava reuniões, não viajava e não passeava em lugares afastados com receio de passar mal e não ter socorro adequado. Certamente contribuiu para o quadro uma agenda atribulada com muitas atividades, tais como professor de faculdade, hospital, plantão, consultório, família, vida associativa, instituições médicas, promoção de reuniões, aulas, entre outros afazeres”, observou o cirurgião vascular.
Depois de procurar ajuda médica e consultar um cardiologista para afastar problemas de outra natureza, e à medida que os exames clínicos apresentaram resultados normais, passou a se sentir mais calmo, e adotou medidas paliativas, como calmantes fitoterápicos, dieta, retomada leve e gradativa de atividade física, passeios ao ar livre, músicas relaxantes, mantras, meditação, e reduziu os compromissos profissionais. “Estejam atentos aos sintomas, leiam a respeito, conversem com seus familiares mais próximos para que eles também ajudem no processo de recuperação. Todos nós médicos, que gostamos do que fazemos e tentamos levar aos nossos pacientes bons resultados, somos cada vez mais demandados. É difícil estabelecer limites entre a dedicação e o excesso. Mas estejam atentos. Não abram mão do tempo livre e de realizar atividades de lazer. Reduzam pelo menos um pouco a rotina de horas de trabalho, e se enxerguem como um ser humano que precisa de um tempo e de uma atenção diferenciada”, conclui.
O Cremesp disponibiliza uma rede de apoio aos médicos por meio do telefone: (11) 5579-5643, Cel.: 9616-8926 ou pelo e-mail: apoiomedico@psiquiatria.epm.br