Nos últimos anos, o Brasil testemunhou uma expansão acelerada de cursos de Medicina, fenômeno que revela a mercantilização do setor
*Por Antonio José Gonçalves e Guilherme Marques dos Santos
A mercantilização refere-se à transformação da educação médica em mercadoria – faculdades de Medicina abrindo sobretudo pelo interesse econômico, tratando vagas como produtos altamente lucrativos, muitas vezes em detrimento da qualidade de ensino e das necessidades de Saúde.
A crítica de que a educação em Medicina se tornou um negócio não é recente. Entretanto, a ampla expansão de cursos de Medicina no Brasil nas últimas décadas intensificou essas preocupações. Mercantilizar o ensino médico significa colocar o lucro acima da vocação formativa: faculdades privadas proliferam cobrando mensalidades altíssimas, investidores veem escolas médicas como ativos financeiros, e vagas de Medicina passam a ser avaliadas em milhões de reais no mercado. Em outras palavras, forma-se um cenário em que abrir um curso de Medicina é, para alguns grupos, tão atrativo quanto abrir um negócio, dado o retorno financeiro substancial.
Esse movimento ganhou força a partir dos anos 1990, quando políticas educacionais mais permissivas e demanda reprimida por médicos impulsionaram a abertura de novos cursos. Desde 1990, o número de faculdades de Medicina quintuplicou, passando de apenas 78 para cerca de 390 escolas médicas em 2024. Trata-se do segundo maior número de escolas médicas do mundo, atrás apenas da Índia (país com população seis vezes maior). Mais de 80% dessas instituições são privadas, indicando que grande parte da expansão foi liderada pelo setor particular. Hoje, estima-se que cerca de 175 mil estudantes estejam matriculados em cursos de Medicina privados, movimentando R$ 26,4 bilhões por ano – o equivalente a 40% de todo o mercado de ensino superior no País. Esses números impressionantes ilustram como a formação médica se tornou um grande negócio no Brasil.
O Brasil ainda convive com grande desigualdade na distribuição de profissionais. As capitais e regiões Sul e Sudeste concentram médicos bem acima da média nacional (chegando a 18,52 médicos por mil habitantes em Vitória/ES), enquanto regiões interioranas ficam muito abaixo de 2 por mil. Ou seja, abrir faculdades no interior nem sempre garante a fixação dos novos médicos ali – muitos formandos migram para os grandes centros em busca de melhores salários e infraestrutura. Sem políticas públicas eficazes para atrair e reter médicos onde há mais necessidade (como em cidades pequenas e no SUS), a expansão por si só não resolve as lacunas de assistência.
Assim, a mercantilização pode agravar a concentração: as novas escolas formam mais médicos, mas a maioria deles se concentra onde a oferta já é abundante, intensificando a competição local e deixando áreas vulneráveis ainda desassistidas.
Exame nacional de proficiência (a “OAB dos médicos”)
Inspirado no exame da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), exigido para bacharéis em Direito, discute-se a criação de um exame obrigatório ao final do curso de Medicina, intensamente debatido pela Associação Médica Brasileira (AMB) e pela Associação Paulista de Medicina (APM). A aprovação nessa prova seria pré-requisito para o recém-formado obter registro no Conselho Regional de Medicina e exercer a profissão. Projetos de lei tramitam no Congresso propondo esse exame nacional e pesquisas indicam que grande parte dos médicos apoia a medida, visando assegurar uma competência mínima padronizada dos formados. Defensores argumentam que isto filtraria profissionais malformados, forçando as escolas a melhorarem seu ensino para que seus alunos sejam aprovados. Contudo, há críticas: alguns educadores veem o exame como um “reparo tardio” – ele puniria o egresso por deficiências que são do curso, em vez de consertar a educação durante o processo. Existe o risco de criar um contingente de formados impedidos de clinicar (apesar do diploma) e de agravar a judicialização, caso esses reprovados recorram à Justiça. Assim, embora o Exame de Ordem em Medicina possa elevar a barreira de entrada garantindo qualidade mínima, ele não substitui a necessidade de melhorar a formação nas faculdades desde o início.
Em abril deste ano, os Ministérios da Educação e da Saúde anunciaram a criação do Exame Nacional de Avaliação da Formação Médica (Enamed), com o objetivo de avaliar a qualidade dos cursos de Medicina no Brasil e o desempenho dos estudantes. A prova, prevista para ocorrer anualmente, será composta por 100 questões objetivas de múltipla escolha, cobrindo áreas essenciais como Clínica Médica, Cirurgia Geral, Ginecologia e Obstetrícia, Pediatria, Saúde Mental, Medicina da Família e Comunidade e Saúde Coletiva.
Apesar de representar um avanço na sistematização da avaliação institucional, o Enamed não deve ser confundido com o Exame Nacional de Proficiência Médica. Como ressaltado pela APM, o Enamed avalia os cursos, enquanto a proposta de proficiência visa garantir que apenas médicos efetivamente capacitados exerçam a profissão, sendo uma medida de proteção direta à população. Ainda que o Enamed venha a ser integrado ao processo seletivo para residência médica, unificando-se ao Enare, ele não possui, por si só, o poder de vetar o exercício da Medicina.
A ideia é que os dois exames — Enamed e Proficiência — atuem de forma complementar, cada qual com uma função distinta dentro de um sistema mais robusto de avaliação da formação médica.
A escolha dos estudantes também influencia o mercado – se candidatos evitarem cursos de reputação duvidosa, as instituições terão de se adequar ou fechar. Em última instância, a valorização da formação médica de qualidade deve ser um clamor coletivo, dada a implicação direta que médicos bem formados têm na Saúde de todos nós.
Antonio José Gonçalves
Presidente da Associação Paulista de Medicina (APM)
Guilherme Marques dos Santos
Diretor Executivo da Comissão Especial de Médicos Jovens da APM

Muitas escolas de Medicina se transformaram em negócios